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25 abr 2024

A entonação está muito além das palavras

por Reinaldo Polito

A comunicação inteligente, perspicaz, que dá resultado, não depende apenas de gestos, vocabulário, gramática, organização das idéias, objetividade e de outros recursos que, de maneira geral, atraem e estimulam as pessoas a se desenvolver para falar de forma correta e desembaraçada. Muito mais do que todos esses aspectos você precisa conhecer e dominar os conceitos que envolvem a entonação. Acompanhe comigo passo a passo tudo o que precisa saber para usar com propriedade esse recurso e tornar suas apresentações ainda mais eficientes.

Um aluno contou uma história bastante curiosa: ele estava de férias na Turquia e logo no primeiro dia de passeio, como curiosidade, entrou numa loja para ver algumas peças fabricadas na região. Depois de olhar os produtos que estavam expostos perguntou ao comerciante qual o preço de uma taça de metal. Assim que o comerciante lhe deu a resposta, ele agradeceu e foi saindo. Pra quê! Disse que foi um alvoroço – o comerciante encolerizado caminhou em sua direção dirigindo-lhe todos os impropérios. Só depois é que soube o motivo da indignação daquele homem. Naquela cultura só pergunta o preço de um produto quem tem interesse em comprar. Se ele julgasse o preço elevado, deveria ter feito uma contra-oferta revelando quanto tinha intenção de pagar. Se não chegassem a um acordo, aí sim o “protocolo” comercial teria sido concluído.

Reservadas as proporções todas, é esse mesmo cuidado que devemos ter no nosso dia-a-dia quando nos comunicamos com alguém. Precisamos levar em conta a formação, o interesse e a expectativa que esse ouvinte tem com relação a nós, à mensagem e à forma como ela será transmitida para ele. Por exemplo, no momento em que escrevo este texto estou também fazendo uma avaliação antecipada da expectativa que você tem com relação a mim e à matéria que começou a ler. À medida que as idéias vão sendo apresentadas eu as reconsidero de acordo com os efeitos que suponho, a partir da minha ótica, elas produzirão em você. Assim, mesmo você não estando presente e, por isso, não podendo conversar comigo, há esse diálogo constante que vamos mantendo – eu escrevendo o que imagino que você esteja pretendendo, como se estivéssemos o tempo todo interagindo.

A entonação é classificatória
E aí garotão, tudo bem? Aparentemente, essa frase poderia ser interpretada como um elogio a uma pessoa mais velha, pois todos nós gostamos de ser vistos como mais jovens. Entretanto, a expressão “garotão” pode soar como um tratamento pejorativo, indicando não a idade, mas a inexperiência ou uma posição social inferior, especialmente se for utilizada por alguém que tenha mais ou menos a mesma idade, ou que seja um pouco mais jovem. E não é apenas o sentido das palavras que determina a marca classificatória da mensagem, mas principalmente o tom, a forma como elas são pronunciadas.
A maneira como falamos classifica as pessoas às quais nos dirigimos. Quando você fala com uma pessoa de baixa formação intelectual observe como a tendência é explicar com cuidado todas as informações para facilitar o entendimento dela. Essa forma quase didática de falar, semelhante à que usamos quando conversamos com as crianças, classifica o ouvinte como alguém despreparado. Ao contrário, quando o ouvinte possui bom preparo, a comunicação perde essa característica didática e você se expressa sem a preocupação de explicar detalhadamente o que pretende dizer. Nessa circunstância, você utiliza de maneira mais acentuada os recursos da ironia e se vale com freqüência da presença de espírito, pois sabe que esse tipo de comunicação é compreendido com facilidade por pessoas com boa formação.

A importância de você se conscientizar de que a entonação é classificatória está justificada no risco permanente de que um pequeno deslize na avaliação feita sobre a formação e as características dos ouvintes pode trazer conseqüências negativas irreversíveis. Por exemplo, talvez você angariasse a antipatia e a resistência de um grupo se usasse um tom condescendente afirmando que os ouvintes não precisariam se preocupar com o entendimento da mensagem porque houve um trabalho intenso no sentido de tornar as informações mais fáceis de serem compreendidas. Ora, qualquer ouvinte com razoável formação intelectual se sentiria ofendido com esse tom que o classifica como pessoa despreparada. O problema se agrava pelo fato de essa avaliação ser feita no instante em que as palavras são proferidas. Mesmo que você tenha estudado com pormenores e com bastante antecedência quais as características dos ouvintes, no momento de falar, ao vê-los, provavelmente usará a entonação de acordo com a classificação que faz das pessoas naquele momento e não apenas a que havia planejado nos instantes de preparação. Se errar, poderá prejudicar o resultado da sua comunicação.

Um emaranhado de fatores
Mikhaïl Bakhtin, um dos mais importantes estudiosos da linguagem, afirma que o fenômeno da entonação se realiza a partir da influência de três fatores:

  locutor / autor

  ouvinte / leitor

  objeto do enunciado

A entonação se dará com a interação desses três componentes no sentido de determinar a avaliação social da mensagem. Assim, o sentido da informação ocorrerá quando quem fala ou escreve, quem ouve ou lê e o assunto tratado interagirem.
Há pouco eu dizia a você que nós estávamos interagindo com este texto, eu escrevendo e imaginando suas expectativas e avaliações e você lendo e identificando minhas intenções, considerando ainda, obviamente, o assunto que está sendo tratado.
O emaranhado de fatores passa a ser mais complexo ainda se levarmos em conta que, como alerta Bakhtin, a entonação é lugar de memória acústica social. O que ele pretende dizer com essa afirmação? Simplesmente que tanto eu como você, isto é, autor e leitor, fomos nos impregnando de entonações desde os primeiros instantes de nossa existência. As características das pessoas com as quais convivemos, que por sua vez foram influenciadas por outras pessoas com as quais conviveram, as músicas que ouvimos, os cursos que freqüentamos, as imagens que observamos, enfim, toda nossa formação influenciada durante uma vida toda participa dessa entonação classificando o grupo social a que pertencemos e nos levando a usar uma forma de comunicar e de receber a mensagem e de interagir para determinar seu sentido.

Observe o comportamento de uma criança de aproximadamente quatro anos. Já nessa idade, nos primeiros aninhos de vida, ela aprende a classificar as pessoas e reage de acordo com as características de cada uma. Com a tia que brinca e conta historinhas, ela se mostra afável, sorridente e alegre com sua chegada; com a prima ranheta, que disputa seus brinquedos, ela se mostra resistente e procura se manter distante; com o avô carinhoso e paciente, ela tanto pode correr para o seu colo, como fazer manha e pleitear presentes impossíveis. Bem, esse aprendizado social ficará para sempre em sua memória, e quando estiver na idade adulta suas atitudes ao falar ou ao ouvir serão resultado dessa sua formação.
Por isso, ao falar, ouvir, escrever e ler a memória social interfere não apenas na determinação do conteúdo como também na forma como a mensagem é transmitida. Por exemplo, ao ler, ou ouvir, você interpretará se a pessoa que escreve ou fala está sendo irônica, contundente, séria, brincalhona, pois ao transmitir a mensagem ela dará pistas do sentido que pretende comunicar.

Você já percebeu que ao falar deverá ter em mente que esse fenômeno da entonação estará sempre por perto. O resultado será desastroso, por exemplo, se você, que teve uma excelente formação cultural e conviveu com pessoas bem preparadas e, portanto, se impregnou dessa marca social, falar com pessoas que não tiveram a mesma formação como se pudessem perceber com facilidade suas brincadeiras e as sutilezas de sua linguagem. Nessas circunstâncias, como já vimos, você deverá produzir e comunicar sua mensagem considerando essa característica diversa dos seus interlocutores. E entender também que a sua atuação alcançará êxito se souber se comunicar levando em conta as expectativas que essas pessoas têm com relação ao seu desempenho, ao assunto abordado e à maneira como ele está sendo tratado.

Comandando a ação do corpo
É por meio da entonação que o corpo, em particular o aparelho fonador, é ativado. Antes mesmo de as palavras, que irão corporificar as idéias, serem pronunciadas o corpo já foi despertado e se movimentou. Por causa desse princípio você perceberá com facilidade que o gesto quase sempre vem antes ou junto com as palavras, não depois. Por esse motivo, o que é exteriorizado pelo corpo se caracteriza como um prolongamento da mensagem interior com toda carga de significação que ela possui, com suas avaliações e classificações e, de forma mais acentuada ainda, a entonação que ela contém. Especialmente a fisionomia, que é a parte mais expressiva do corpo, pode determinar ou não a coerência entre a mensagem transmitida pelas palavras e a mensagem comunicada pelo corpo. Tanto assim que, às vezes, há necessidade de uma certa interpretação para que o corpo corresponda efetivamente ao sentimento que deveria comunicar. Isto é, a pessoa interpretar sua própria verdade – sentir e demonstrar o que está sentindo.
Entretanto, pode ocorrer também a simulação desse sentimento. É o caso do malandro, que, sabendo qual a expectativa que as pessoas têm quando um sentimento existe, age como se estivesse possuído desse sentimento, demonstrando nos seus gestos, na sua postura e na comunicação da sua fisionomia um sentimento que não é seu. Mas o ouvinte, que pela sua memória social aprendeu a identificar a expressão do corpo como uma espécie de revelação de um sentimento, é enganado na sua avaliação. A mesma análise serve para a atuação do artista, que demonstra no seu comportamento um sentimento que não é seu, mas sim da personagem que interpreta.

Influências externas
Galbraith afirma que uma pessoa é avaliada por três fatores essenciais: pela sua personalidade, pela propriedade que possui e pela organização a que pertence. A partir desses três fatores o ouvinte irá identificar o nível econômico-cultural-social, a formação, o poder, a autoridade, enfim, fará uma avaliação de quem é a pessoa. Esse conjunto de fatores tem extraordinária influência no sentido da mensagem. A mesma mensagem transmitida da mesma maneira por pessoas com esses três fatores distintos será interpretada também de maneira totalmente diversa.
Há em São Paulo um tradicional restaurante comandado diretamente por seu proprietário, o conhecido nacionalmente Massimo. Esse tipo carismático e comunicativo tem o hábito de recepcionar seus clientes ao pé da escada sempre falando muito alto e brincando com eles, independentemente de serem ministros, artistas consagrados ou um executivo comum. Esse comportamento é aceito com naturalidade por se tratar dele, uma pessoa respeitada pela sua personalidade, pela sua propriedade e por ser dono do restaurante, ou seja, pelo papel que representa na sua organização. A aceitação provavelmente não seria a mesma se essas mesmas atitudes partissem de um dos garçons. Pela conjugação desses três fatores, a posição profissional desse garçom não justificaria intimidade com essas personalidades.
A partir da avaliação desses três fatores você poderá saber qual o comportamento e o tipo de comunicação que deverá manter com as mais diferentes pessoas. Não é raro, por exemplo, um executivo do escalão médio da empresa fazer uma apresentação para a diretoria, e, por ter a posse da palavra diante do grupo, julgar que poderá se comportar como se fosse um de seus amigos íntimos. Essa atitude geralmente é criticada e, por melhor que tenha sido a apresentação, o resultado para esse executivo, por não ter feito uma avaliação adequada, provavelmente será negativa.

O uso da língua como atributo
Embora você viva em sociedade, será visto e percebido sempre a partir de sua individualidade. Por exemplo, há uma norma da língua estabelecida para que as pessoas se comuniquem, mas a maneira como você faz uso dessa norma é particular, própria sua. Você será avaliado pela maneira como constrói as frases, conjuga os verbos, faz as concordâncias. As pessoas observarão a maneira como você usa a língua para fazer uma avaliação a seu respeito. Esse é um dos pontos mais importantes, senão o mais relevante, referente à entonação. Alguém que se apresente com erros gramaticais, construindo frases defeituosas e incompletas será visto como pessoa despreparada e sua mensagem será avaliada por essa identificação. Por mais importante que seja a informação, a influência dela estará subordinada a essa avaliação do uso da língua. Da mesma forma, ao falar, pela maneira como usa a língua, você estará também fazendo uma avaliação do seu ouvinte. Isto é, o uso da língua tanto serve de base para a avaliação que o ouvinte faz de você, como constitui importante indicador da avaliação que você faz do ouvinte.

Entonação é complemento
A comunicação, a partir dos seus mais diversos componentes como a voz, o vocabulário, a expressão corporal, só se completa e define seu sentido a partir da entonação. Na verdade, como já vimos, é a entonação que age como espécie de estopim para que o corpo e os demais aspectos da comunicação passem a funcionar.
Quando você fala, a voz, a pausa, o ritmo, o gesto, a expressão facial, as palavras e todos os aspectos envolvidos no processo de comunicação irão se completar com a participação permanente, e que na verdade os antecedeu, da entonação. É possível afirmar que toda a nossa vida, considerando aí os preconceitos que carregamos, as mágoas, alegrias, expectativas, transparece na nossa maneira de falar por causa da entonação. Lembrando mais uma vez que não é apenas nossa vida, mas também a vida de cada um dos ouvintes, com as quais interagimos dando sentido e finalidade à mensagem transmitida.
Mesmo um discurso escrito por outra pessoa, que ao ser lido aparentemente representaria apenas as intenções de quem o produziu, não está isento desse fenômeno. Primeiro, porque quem o escreveu levou em conta o que a pessoa que iria ler tinha como expectativa e o que os ouvintes também esperavam ouvir. Depois, ao ser pronunciado, associado às intenções de quem o escreveu há a interferência de todos os fatores que analisamos até aqui na maneira de se expressar de quem faz a leitura.
Portanto, a entonação atua como causa e conseqüência na produção, na interpretação e no sentido final da mensagem. Talvez seja um dos aspectos mais importantes da comunicação, porque, conforme foi possível demonstrar, todos eles se originam, são despertados e se completam a partir desse fenômeno.

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